sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Trecho de meu conto "Hereditário"

 

                            HEREDITÁRIO

 

 

 

Ele era filho de seu pai. Portanto, ele carregava aqueles genes em seu código genético. Hoje, seu pai era um homem velho e a sombra do jovem belo, saudável e astuto que um dia foi. Seu filho agora vivia o auge da juventude, com todos os atributos que haviam abandonado o pai. É claro que o filho sentia-se compromissado a continuar o legado de seu progenitor. Afinal, ele perguntava-se hoje em dia, não fora para isso que eu fui educado? 

Não houve, é verdade, uma educação clara e sistemática quanto ao que ele deveria dar continuidade. "Você nasceu para tal e deverá ser educado para tal". Não, não houve. Na sua família, era tudo muito velado. Quando uma criança ingênua, ele apenas ouvia sussurros dos segredos familiares, como se ainda não fosse a hora de ele saber, pois talvez ainda não estivesse devidamente treinado, preparado. E realmente não estava. 

Quando adolescente, numa manhã, quando chegou para passar o fim de semana com o pai, que há muito era divorciado de sua mãe, ele ouviu os vizinhos sussurando enquanto ele se aproximava da casa: "só não deu polícia porque entrou dinheiro e influência no meio". 

Agora, em retrospectiva, ele percebe o quanto era ingênuo. Não conhecia nenhum dos esqueletos no armário da família. Tudo encontrava-se velado. O pai não tinha vícios em substâncias estupefacientes, não exercia atividade laboral ilegal alguma, então, ele se perguntou, do que se tratava? 

Certo dia, durante uma tarde calma, ele recebeu uma ligação do pai: "faz um favor para mim?", o homem indagou. Com a afirmativa entusiasmada de um filho que ama a família, o pai pediu: "eu esqueci um pedaço de papel em cima da mesa; joga fora!". Ele se despediu do filho com afeição. 

O menino, solitário e consumidor de inúmeros tipos de histórias, dentre as quais as de espionagem, colocou-se de prontidão para dar fim a esse pedaço de papel que podia prejudicar o pai. Procurou desesperado. Encontrou o pedaço do crime. Curioso, leu o que estava escrito no papel. "Maria Boquete", e também havia um número de telefone anotado. O menino enregelou. Amassou o papel, e, não satisfeito, resolveu tocar fogo. O pai, ele agora sabia, traía sua atual companheira. Mas esse segredo, mais um esqueleto no armário da família, teria que ser enterrado como se enterra um defunto, ainda que com a ajuda de uma criança inocente. 

Outra vez, no começo da noite, o pai pediu ajuda do filho para "consertar" a impressora que havia travado. O garoto, sempre curioso, tomou essa missão para si. Não foi difícil, mas assim que a impressora "destravou", ela imprimiu várias imagens pornográficas. Numa delas, uma mulher tinha a vagina penetrada pela cabeça de um homem careca. O garoto percebeu que estava sexualmente excitado. Pegou as impressões, amassou com força e correu para jogar no lixo, bem longe dali. 

Já adulto, meditando a respeito da sua infância, ele percebe que desde muito cedo teve a sexualidade despertada. Haviam palavras ditas perto de si, que como pronunciadas por um mago cabalista, despertavam tesão no garoto. Outras vezes, acontecia durante as brincadeiras. Ele chegou a acordar com sede, no meio da noite, e encontrar familiares transando. A mulher vinha com um copo de água, entragava-o e dizia rudemente: "vai dormir!"

Tudo aquilo que ele havia visto os adultos da família viverem, ele também viveu tempos depois. Traição, amores não correspondidos, relações frágeis e problemáticas, finanças no vermelho. Antes de ser um adulto, ele flertou com ideologias extremistas sob o anonimato da Internet. Naquela época, havia menos vigilância sobre a World Wide Web. Era fácil se envolver.

Conforme o Estado aprendeu a tragar a internet como traga nossos impostos, foi necessário aprender a navegar numa parte mais obscura e difícil de acessar da internet, a Dark Web. Sua curiosidade levou-o a aprender a como acessar a rede Tor, Freenet e I2P. Sua predileta era a mais famosa e fácil de usar, a rede Tor. Foi inevitável aprender sobre Linux e cibersegurança. 

Lá nas profundezas do mundo virtual ele também buscou segredos proibidos, esqueletos no armário de famílias. Na época, aprender inglês foi inevitável. Hávia pouco conteúdo em seu idioma natal. Era necessário ser, ao menos, biglota. O inglês levou-o ao delete maior das suas descobertas. Ele acabara de chegar ao paraíso.

 

(Continua...)


Ícaro Felipe